A Bailarina
" A vida amou a morte mais do que havia para morrer."
Pádua, Itália, 11 de Janeiro, 2010
- Madrugada -
Tudo na sala era um caos: os móveis empilhados do lado leste, os livros nas estantes acumulando poeira, depositados em cada prateleira em toda a extensão do recinto sem obedecer a um padrão lógico e o rosto de Fabrizio coberto por uma máscara inexpressiva. Meus olhos permaneciam sensíveis a qualquer movimento, capturando cada ser escondido na sala escura por menos que ele fosse.
A minha mente trabalhava cem vezes nesta noite numa tentativa insensata de compreender cada nova revelação que me era jogada na cara. Eu queria correr, eu queria gritar, mas o peso posto nos meus ombros soldou meu corpo e equilíbrio no canto ao qual eu me forçava a ficar de pé; meu último ato consciente, uma capa de força.
“Uma bailarina do inferno é isto que ela é”, pensei. Seus gestos contidos, macios, suaves; o andar seguro e leve com as pontas dos dedos mal tocando o piso cor de avelã.
O cabelo solto comportado nas costas e a postura totalmente séria, ela não desistira de nós, mesmo que esse fosse o nosso desejo final.
Ressoava nos meus ouvidos cada sílaba da sua história funesta, cada entonação ferida por ter perdido há quem muito amava, por ter sido separada prematuramente do seu futuro marido.
Emily, após séculos, remoia a lembrança da sua transformação e nem eu ou Fabrizio a impediríamos de nos fornecer o auxílio que ela própria não teve no que chama de “luta contra as trevas”.
Encontrei em meio à luz da Lua que entrava no cômodo os olhos do meu amado tão absorto em seus pensamentos, tão lindo em sua masculinidade e protetoramente sentado a poucos passos; ele agiria instantaneamente se as intenções de Emily fossem uma farsa.
A bailarina continuava falando sobre si e apontando para cada tela nas paredes desbotadas da sala desativada para reforma.
Rodopiava no ar e alisava com uma expressão magoada o pescoço e o colo, como se houvesse incômodo, ou algo que deveria estar ali, mas por algum eventual fato havia sido arrancado do seu lugar de origem.
Peguei-a me fitando determinadas vezes, contemplando a cor dos meus lábios, o comprimento das minhas pernas e a silhueta do restante do meu corpo.
Por mais que eu conseguisse prever alguns dos seus atos, toda ela era uma página em branco.
Fabrizio compenetrou-se ainda mais no seu objeto mental em questão e não me restou nada a fazer a não contemplar a Lua majestosa do lado de fora da janela através do vidro fino.
- O que vamos fazer agora? – perguntei no intuito de retornar à razão do meu ser. Fabrizio foi pego de surpresa me olhando desconfiado, mas a bailarina infernal continuou dançando pela sala como nenhuma palavra tivesse sido proferida.
- O que você pensa em fazer Julie? – Ele rebateu a pergunta, mas eu sabia que ele possuía uma resposta.
- Sendo sincera... Não sei. Não podemos nos esconder, não podemos fugir. E lutar contra o devorador de almas não está em debate.
- Você está errada, mas por hora, é melhor levar-lhe de volta ao quarto. Bacco não ficará feliz caso a senhorita não esteja lá pela manhã.
- A Lua ainda está alta no céu, nós temos tempo de sobra. – eu disse constando-o.
- Você está errada, menina. Não temos tempo algum. – e senti o frio da morte percorrer minha coluna. Era a primeira vez que Emily falava-me diretamente, olhos nos olhos. Ela evitara ao máximo aquele contado, mas agora se encontrava ali, sondando a profundidade do meu olhar. Virei à cabeça sem permitir que ela visse os temores escondidos na minha essência e olhei para Fabrizio para saber o que ele achava sobre esse novo fato.
- Emily, eu agradeço a sua preocupação e auxílio. Mas tenho que temer também pela vida dos outros inocentes desta cidade. Bacco ama essa garota e não suportaria perdê-la. É seguro mantê-lo longe, a salvo. E não acredito que ele ficará compassivo caso ela não esteja em seu quarto. Faria alardes em toda a Universidade e seu irmão descobriria automaticamente quem está por trás disso: você.
Pegando-me com seus braços fortes, aninhando-me ao seu corpo, Fabrizio me levou escada à baixo lentamente até que minhas pálpebras tornaram-se chumbo e eu deixei de sentir seu hálito quente em minha face e o som constante do seu coração.
É isso! Depois de meses sem pegar nesse conto, hoje acordei com uma vontade súbita de escrevê-lo, que por pouco, não me fez enlouquecer. A frase maravilhosa sob o título é do Cronista Fabrício Carpinejar que até esta data eu só conhecia por nome. Um blog muito querido ao qual eu leio fielmente, apresentou-me a este incrível intelecto humano e só posso agradecer pelo novo mundo que se abre diante dos meus olhos. De todo o meu coração, eu espero que vocês tenham gostado dessa parte e podem criticar à vontade. Apenas um pedido: sejam sinceros. Muito obrigada aos leitores. Até a próxima postagem.