De Iracema à Capitu

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Recordo-me bem das histórias que lia quando criança. A prateleira do quarto cheia de brinquedos, a cortina amarela enfeitando a janela, uma cama de solteiro e todas as minhas bonecas e bichinhos de pelúcia sobre ela. A leitura era doce, sutil, alegre; infantil como deve ser.

Todos os dias a criança cresce um pouco até que se torna menos criança e mais adulta. As responsabilidades que antes eram com a arrumação dos brinquedos nos cestinhos agora são em ajudar a mãe com a limpeza da casa e a cuidar dos irmãos mais novos. O amadurecimento releva novas nuances na leitura e novos universos por trás deste.

Com nove anos peguei emprestado com a minha tia Iracema de José de Alencar. Livro este que na capa estampava uma linda índia com os cabelos negros enfeitados por penas coloridas de pássaros. O desejo de ler Iracema não surgiu imediatamente, eu sou um tanto assim, pego livros pelo impulso e desejo de tê-los para mim até que um dia o desejo de consumi-los aparece e eu os devoro um a um, ou todos de uma só vez. A tarefa de ler uma Iracema de uma edição de mil novecentos e pouco não foi fácil. Meus olhos ardiam. Minha garganta ficava seca. A cabeça doía às vezes... Parava, comia e retornava à rede na varanda de casa que sempre foi um dos meus locais preferidos de leitura. Era uma Iracema a perturbar meu sono e um Martim a me encher de raiva. Raiva por ela ser tão sincera e ingênua nos sentimentos como uma garotinha de nove anos não conseguia ser – graças a Deus! Os sentimentos foram os mais diversos e ao término do livro chorei como antes e depois disso nunca houve igual. Iracema foi a minha primeira leitura “de verdade” e aquele choro convulsivo foi um divisor de águas em minha vida.

Anos mais tarde, já cursando o ensino médio, conheci Capitu. Nunca concluí a leitura de Dom Casmurro embora tenha um exemplar do livro de Machado de Assis em casa que ganhei ainda quando criança. Capitu surgiu em minha vida na figura de uma amiga que eu tanto amo. Os olhos de Noemy e os olhos de Capitu são um só. Suas brincadeiras de menina, sua percepção aguçada, seu poder de enfeitiçar a todos são tão parecidos que as tonam faces iguais e opostas da mesma moeda. Ambas são assim, una.

Mas Capitu não me foi revelada de cara, precisei de anos de convivência até que pudesse compreendê-la e aceita-la com sua verossimilhança. Antes de Noemy eu tinha um desejo enorme de conhecer Capitu e até hoje não sei explicar o motivo de não ter feito isso antes. Gosto de pensar que o destino quis assim para que eu pudesse conhecer uma Capitu de carne e osso! O reconhecimento de quem ela era de fato nos envolveu num segredo profundo que compartilhamos até hoje em nossa amizade... Minha menina oblíqua e dissimulada! 

No intuito de eternizar a minha Capitu-Amiga lhe escrevi os seguintes versos: Ela é a minha capitolina. / Tão inocente / Tão menina / Tão quanto é minha. / Ela é a capitolina dos sonhos / Dos sonhos outros / Dos pequenos que se acham grandes. / Ela é a capitolina do tal romance, / Cheia de facetas e certezas que só as meninas têm; / Que só as mulheres possuem. / Ela é Capitu. / Capitu e ponto. / Não há necessidade de descrevê-la, / Apenas, de amá-la.

Texto 1: Leitura e Produção de Textos em Língua Portuguesa
De Iracema à Capitu
Universidade Federal da Bahia
 
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