Temário'



A vala carrega o sangue desconhecido. Na nitidez o bueiro me parece assustador.
Ali dentro a cor sanguínea dilui na água corrente e desaparece. Dito e feito. Preto no branco.
Uma silhueta perde-se nos prédios ao lado norte da rua; identidade preservada.

O mugir assustado das vacas arrepia minha nuca e me sinto claustrofóbico sob claustro normal. Os restos do feto trucidado flertam com outros restos quaisquer no esgoto e o ricochete de uma bala rompe o silêncio de um cenário antes bucólico.  - Psíquico humorista!

Arrasto-me rijo até o velho roçado. Pessoas acordam e ligam os carros, acendem os faróis; iluminação precária. Já é tarde, horário tedioso. O chacareiro, de vigia, faz relatório aos demais sobre a noite espantosa. Em verborragia descreve um sicrano, mas a única coisa que sabe é que o tal sicrano é homem e por desavença passada acusa o moveleiro de ser o autor e co-autor do crime. Dos crimes, uma noite... Ninguém reparou nas marcas de sangue enfeitando o asfalto.

Ladeado pelo horror, colérico por vocação, ergo os olhos no meu esconderijo e encontro o foco na carapinha feminina desalmada. Em minha sólida agudez, reconheço mais ao longe o carão da moça desossado.  - Duplo assassinato.
Julgá-la-ia como autora do aborto, mas em tal circunstância não posso afirmar. Violaram-lhe o útero, o teleósteo, o occipital. Foi o sicrano, sem dúvida. Como um copista pérfido, arrasou a vítima de forma radical e tenaz. Jogou a defunta sobre campo denso perto do canteiro de violáceas e em comoção, o vira-bosta decompõe suas sobras. Ela não mais será a lactante de sorriso aberto. Será agora alimento de besouro em ovo novo.

- Patife; eu encorujo e fico a esperar. Sem mover músculos, sem o dom da fala, reservado. Um tecnocrata asfixiado pela sua tecnocracia. O lábaro não existe para quem tem o pé no chão e aduzido como estou vou a bambolear de volta a clausura dos fatos recentes, marcados a ferro e fogo nas entranhas da minh'alma.

Como um homem provocado em ferida aberta, chorei a dor do crime. Vomitei o estômago fraco em agitação. - Lágrimas perenes, provérbio anulado, extinto.
A única luz agora provém do corisco, e em tentativa de dormir floreio um amor-perfeito na borda de um ofício desgastado.
Espasmos violentos me chegam em socos no instante em que o pastiche da parede ganha versão renovada. Beijo, em delírio, uma face mutilada e em variação de personalidade retiro do bolso a pistola herdada; vejo-me arrancar entre dentes aquele filho bastardo e meter um tiro na testa da jovem grávida.

- Dedicado a um leitor do blog que me inspirou a escrever textos mórbidos -

6 Comentários:

Anônimo comentou:

Uau!!! ...
Chocante!
Sem dúvida, morbidez é o que não falta no seu texto.
Adorei a forma de expressão arriscada e delicada.
Adorei!!!
=D
( E muito obrigado pela dedicatória,. me sinto lisonjeado em contribuir com seus escritos )

~* Bruna Morais comentou:

Muito bom o texto, de verdade.
Parabéns pelo blog.

Beijos.
http://www.metamorfoserosashock.blogspot.com/

Debbys comentou:

E coloca mórbido nissO! Muito bem escrito, mas medonho! xD
bjusss

Carla Ribeiro comentou:

"Em verborragia descreve um sicrano..."
Adorei isso de verborragia. Já tinha visto antes, mas achei bem colocado aqui.
O texto tá bem mórbido mesmo, viu? Mas tá a cara de Clarice Lispector com essa tenacidade de difícil leitura e interpretação. Não é texto para se ler uma vez só.
Enfim, conseguiu colocar o favicon, hein?
Beijo, amiga. Saudade!

Michele comentou:

Não é texto para se ler uma vez só mesmo. Mas como vale a pena lê-lo e lê-lo outra vez! Apesar de morbidez não ser meu estilo de leitura preferido, você o escreveu muitíssimo bem! Está de parabéns mesmo! =)


Um beijo, moça!

Unknown comentou:

gente, encorujo = encorujado = isolado, mas nesse caso (literário) pq a palavra "encorujo" não existe no dicionário é a mesma coisa que as corujas fazem de dia : elas escondem a cabeça.

 
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